ENTREVISTA COM JOÃO NICOLAU

ENTREVISTA COM JOÃO NICOLAU

Por Felipe Bragança

Escrevi a João depois de ter visto seu A Espada e a Rosa (Portugal, 2010) no Festival de Cinema de Santa Maria da Feira 2010, onde estive apresentando A ALEGRIA (meu Segundo longa, co-dirigido com Marina Melande). Muito feliz com o que vi na tela, e com os ecos em coisas que muito gosto de ver e filmar, escrevi a João algumas perguntas e lhe enviei no ultimo mês de Janeiro. Depois de um tempo de silêncio, me chegaram um simpático e-mail...e as respostas. (F.B.)

1 - A Espada e a Rosa me lembrou traços de Keaton, de João César Monteiro e de narrativas de aventura do século 19. Mas obviamente consegue fazer isso criando uma farsa especialmente encantadora pela particularidade de algumas sutilezas de diálogo com passagens de humor físico, de movimento e pantomima. Como foi que você trabalhou esse personagem ao mesmo tempo bufão e metódico, cheio de artimanhas com seu protagonista?

J.N.: Eu escrevi “A Espada e a Rosa” pensando já no Manuel Mesquita como o actor para representar a personagem principal. É um compincha de longa data e já tínhamos trabalhado juntos na minha curta “Rapace”. Ele já conhecia, por isso, o meu método de trabalho e sabia da enorme disponibilidade que eu exijo para ensaios. Por outro lado eu sabia que podia contar com a sua musicalidade inata, com a sua vocação para línguas e com as suas aptidões felinas (o Manuel esteve presente em todas as fases de selecção do gato Maradona). Era também importante para mim que todas as acções “físicas” fossem trabalhadas com afinco. Da estranha dança que ele faz quando em situações de apuro até ao dobrar das meias quando arruma a roupa tudo foi ensaiado com o objectivo de eliminar gestos desnecessários ou demasiado vistosos. Quando lhe pedi para passar uma piscina inteira debaixo de água sem respirar o Manuel foi para a piscina onde filmámos treinar dias antes. Um craque, em suma.

Devo ainda referir que o Manuel Mesquita (o actor que representa a personagem principal) descobriu comigo o plutex. Foi num verão há cerca de dez anos. Nós saltámos o muro de um aldeamento turístico e ficámos horas a olhar aquele azul mega artificial da piscina. Então o plutex apareceu-nos como uma evidência.

2 - Vejo uma beleza desencantada incrivel no seu filme - um romantismo forte na relação do homem com o abandono da civilização mas um desvio final que se desenha naquele retorno final dele, no lindo ultimo plano do filme. Como você pensou essa relação abandono e retorno no filme? É um filme sobre deserdar. Ele deserda de Lisboa mas depois deserda da "tripulação" em que tinha de envolvido.

J.N.: Eu não sei se ele retorna no final do filme… O que sabemos é que ele parte sozinho, de mapa na mão, em direcção à floresta. Regressará a Lisboa? Deambulará eternamente entre montes e vales buscando mais plutex? Regressará ao mar?

O que é certo é que é triste. O Manel é um tipo que abandona tudo em Lisboa - foge de algo ainda pior do que não ter trabalho, dinheiro ou amor - para se juntar a uma tripulação utópica a bordo de uma caravela do período dos Descobrimentos (foi nessa época que começaram a germinar as noções de individualismo e liberalismo…). E não é que mesmo nessa “sociedade ideal” há uma traição? Pobre Manuel. Depois, nas propriedades de A Rosa, todos os companheiros sucumbem à doce vida fácil que ali lhes é apresentada. E Manuel é o único que prossegue a sua quimera.

A personagem com quem o Manuel tem mais relação no filme é com o gato Maradona. Um amigo disse-me (em tom de reprovação) que isso era triste. Eu respondi: “Pois é, o filme é sobre isso”. A sociedade é por vezes um sítio terrível, a nossa fraqueza é muito maior que a nossa fibra e só num filme eu poderia encontrar um personagem que não vacilasse, que não deixasse, por um momento só, corromper os seus princípios morais.

3 - A anarquia com que voce lida com gêneros de aventura, espionagem, ação no seu filme me faz lembrar de uma coisa que eu acho muito importante: a coragem de digerir o cinema de genero de forma altiva, ironica e ao mesmo tempo apaixonada. Queria que voce falasse da sua relação com o cinema e esses gêneros.

J.N.: Eu nunca sonhei fazer filmes. Não estudei para isso e a minha aproximação à área foi gradual (antropologia, documentário, montagem, ficção). Hoje considero-me um priveligiado por ter o trabalho menos chato do mundo: o princípio que orienta a minha actividade é o princípio do prazer. Eu gosto muito de filmes de aventura, pirataria e de filmes musicais. Gosto sinceramente. Mas para servir o argumento que me propus tratar neste filme não me pareceu que uma abordagem clássica gerasse os resultados que eu buscava. Assim que me pareceu mais proveitoso evocar e transformar géneros do que propriamente enquadrar um filme dentro de um só género. Falo disto agora assim mas é verdade é que no processo de escrita e rodagem do filme esta prática foi uma coisa intuitiva, não passou muito pelo crivo da reflexão. O gozo de ir descobrindo formas de abordar a história e as personagens é que norteou o meu trabalho. Aliás, a justaposição de géneros encontra no filme outros equivalentes como sejam a profusão de línguas que se ouvem, a condensação de épocas (um enorme computador numa caravela do séc. XV) ou a variedade de formas musicais presentes no filme. Corre-se, sem dúvida, o risco da voragem babélica mas para tratar uma aventura ligada a uma substância que mexe com a origem do universo não se pode deixar palha por virar.

4 - No Brasil, eu sinto como realizador que particularmente vivo um embate diario com nossa tradição realista, de filmes cronista do dia a dia real e da "observação". Em Portugal, pensando em Monteiro, Oliveira e alguns outros nomes, não diria que haja uma tradição hoje tao forte de realismo cinematográfico. Como você se sente no meio da cinematografia portuguesa atual? Você se identifica com outros realizadores ou imagens ou questões a seu redor em Portugal?

J.N.: Gostava de desviar a pergunta para a questão da língua. Eu acho que a língua portuguesa não facilita uma abordagem realista no cinema. É apenas uma hipótese que levanto, não sou um grande conhecedor e talvez esteja a ser injusto com a cinematografia portuguesa e brasileira (que conheço muito mal). A verdade é que a maior parte dos filmes portugueses de que gosto não “joga” bem com o realismo cinematográfico. Na verdade, não me lembro de um único filme realista português de que goste mesmo. Atenção, estou a falar apenas de ficção. No documentário, o realismo é aceite tacitamente e aí a língua não é de todo um entrave (os filmes de Eduardo Coutinho são, para mim, um bom exemplo de uma utilização proveitosa da língua portuguesa no cinema). Acho também curioso que a intromissão do documentário seja uma porta de entrada para o realismo nalguns excelentes filmes de ficção portugueses recentes (“Aquele Querido Mês de Agosto” e “Juventude em Marcha”, por exemplo) mas se calhar estou só a forçar a minha teoria. Há quem diga que o cinema português deve mais à poesia que à prosa – talvez seja outra boa perspectiva para discutir a questão. As grandes referências do cinema português, João César Monteiro e Manoel de Oliveira, são cineastas tão livres e radicais que superam o realismo ou se servem dele para operar uma transformação e elevar os temas que abordam a outros níveis. Há uma cena nas “Recordações da Casa Amarela” que ilustra bem isto. Descrevo rapidamente: o comissário da polícia investiga os pertences de João de Deus e encontra um livro de Holderlin. Pergunta-lhe “`É policial?”. Resposta de João de Deus: “Não. É celestial.”.

A liberdade como Monteiro ou Oliveira usam a língua é inspiradora para mim, sem dúvida. Também me diverte muito o uso de diálogos praticamente teatrais, gosto bastante desse artificialismo e, paradoxalmente, necessito dele para acreditar num personagem.

Há, hoje em dia, muitos filmes portugueses sobre “questões sociais” (a emigração ilegal, a droga, a exclusão, etc) que geralmente se esgotam nisso mesmo, em ser filmes “sobre”. E há também, felizmente, realizadores que fazem sempre bons filmes qualquer que seja o tema que abordem: Pedro Costa, Manuel Mozos, Miguel Gomes.

5 - Fala um pouco sobre sua colaboração com o Miguel Gomes. Como se dá essa parceria como fotografo e montador? Voces estudaram juntos? Começaram juntos a pensar e a fazer cinema? Vcoˆ´se identifica com ele ou é uma relação mais complementar?

J.N.: Eu estudei antropologia e, como tese de mestrado, fiz um pequeno documentário. Depois comecei a trabalhar em montagem e o Miguel foi a primeira pessoa que me convidou a montar um filme de ficção (a sua curta “31”). Nós já nos conhecíamos pessoalmente mas não estudámos juntos nem começámos a fazer ou a pensar cinema juntos (o Miguel fez a escola de cinema e foi crítico antes de se tornar realizador). Aliás, eu só conheci o Miguel depois da sua primeira curta (“Entretanto”) e só trabalhei com ele a partir da terceira (“31”). Trabalhei com ele sobretudo como montador e actor (na longa “A Cara que Mereces” e na curta “Cântico das Criaturas”), a fotografia foi só em duas curtas que foram filmadas em vídeo e nas quais a montagem decorria em simultâneo (“31” e “Kalkitos”). O Miguel trabalhou na montagem da minha curta “Rapace” e quando os meus produtores me propuseram escrever “A Espada e a Rosa” eu tive que abandonar a montagem de “Aquele Querido Mês de Agosto”, não dava para fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O Miguel é das pessoas com quem mais prazer tenho em falar de cinema e é um amigo generoso a quem eu devo muito nestas coisas de fazer filmes. Embora recentemente não tenhamos trabalhado juntos é das primeiras pessoas a quem eu mostro um guião ou a montagem de um filme.

6 - Voce pode me contar um pouco sobre seus proximos filmes? O que anda planejando?

J.N.: Os meus próximos filmes serão duas curtas. Uma chama-se “Gambozinos” e narra as peripécias de um menino de onze anos numa colónia de férias. É claro que vai ter monstros de verdade, rap e uma tal de Tânia que deixa a cabeça do rapaz a andar à roda. A outra ainda não tem título definitivo e vai ser um filme a descobrir na rodagem. Eis as duas linhas que servem como guia de trabalho: “Um desconhecido chega a Guimarães e tenta convencer os locais a procurar a purificação através das lágrimas. Rejeitado pela população, vai encontrar consolo e companhia nas margens do rio Selho.”

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